terça-feira, 1 de maio de 2012

O Cântico Negro, Edson Bueno





“No cinema de poesia, a história tende a desaparecer. O autor escreve poemas cinematográficos. No cinema de poesia, o protagonista é o estilo, mais do que as coisas ou os fatos. Meus filmes pertencem a essa categoria.”- Pier Paolo Pasolini para o “Cahiers Du Cinéma.

Que Pasolini era um poeta não há a menor dúvida. Que Pasolini, se não podia transformar o mundo, queria ao menos dar-lhe uma chance de pensar outras possibilidades, não há a menor dúvida. Que Pasolini não tinha o menor interesse em ordenar a vida, muito pelo contrário, não há a menor dúvida. Que Pasolini não era apenas um revolucionário político, mas um revolucionário da civilização, um poeta que acreditava piamente que a única solução para nossas vidas era colocando tudo abaixo, virando tudo de ponta cabeça, alterando a ordem das coisas, desconstruindo a matemática, fazendo da ideologia da vida um ato de pura paixão pela inocência da natureza primária. Agora, quanto penso novamente em Pasolini, algumas ideias desgarradas aparecem, assim, do nada, pra dizer: “Olha, eu também estou aqui!”. E não é que hoje, acordando do susto, 11h30, sussurra nos meus ouvidos o poema “Cântico Negro”, do poeta português José Régio. O que isso tem a ver com Pasolini? Acho que tudo, mas, como as melhores coisas da vida e as maiores luzes do inconsciente, não tem a menor utilidade prática.

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

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